O artigo é...
O matuto que foi senador da República
*Manoel Ferreira Lira
Com oito anos, idade em que crianças de todo mundo brincam quase todo o dia, afora os momentos de sono, o menino João era diferente: órfão da mãe, Maria Josefa de Melo, que deixou o marido, Salustiano José dos Santos, com oito filhos, foi praticamente criado pelo tio Pedro Correia das Graças. Mas na roça, já trabalhando nas terras de alugadas de João Nunes Magalhães, para que conseguisse ajudar no sustento das famílias, de Pedro Correia e de Salustiano. Principalmente ele e seus irmãos maiores, Manoel Lúcio da Silva e José Lúcio de Melo. Foi nas terras dos Caititus, nas Arapiraca.
De trabalhador braçal, nas rodas das casas de farinha, João Lúcio chegou, com 18 anos a substituir seu primo, Marciano Ferreira, nas empresas de Antônio Apolinário. Isto em 1932. Nesta época, seu irmão, José Lúcio, também começou a trabalhar como balconista na loja de Luiz Pereira Lima.
Mesmo no trabalho nas empresas de Antônio Apolinário, o rapaz João Lúcio não deixava o convívio com as terras de Arapiraca, e assim, e m 1936, já casado com Inez Nunes da Silva (órfã aos 7 anos de Antônio Nunes da Silva e Antônia Madalena da Conceição), plantava e vendia o mais novo produto agrícola da região: o fumo.
E João Lúcio torna-se proprietário: com uma herança de sua esposa Inez, recebe trinta tarefas de terra no sítio Cavaco. Planta e cultiva o fumo, desde mudas até a cura em sequeiros, enrolando-o e vendendo na feira de Arapiraca, município já independente desde 1924. Nesta época, melhorando de vida, estabelece-se também com uma mercearia, vendendo de tudo um pouco, além de construir um bangalô no lugar da casa de taipa onde morava. Era a década de 40.
A política
Com a grande especulação do fumo em corda, João Lúcio passa a armazená-lo, esperando sempre o melhor momento para vende-lo. Os lucros foram grandes e o menino da roça, já musculoso financeiramente, com uma prole numerosa (ao todo, nascidos no Cavaco foram nove filhos), passa a fazer parte da política do município. Primeiramente, e ainda morando afastado da urbana, apoia seu irmão José Lúcio de Melo a vereador, no ano de 1947, pela União Democrática Nacional – UDN.
Os Lúcio, João, José e Manoel entram de vez na política, fazendo oposição ao líder Luiz Pereira Lima, do Partido Social Democrático, o PSD. E ao governador Silvestre Péricles de Gois Monteiro. Foram tempos difíceis, com acusações de parte a parte. Mesmo ainda morando afastado do centro de Arapiraca, o apoio ao irmão político foi importante.
Tempos difíceis. Depois da eleição de Claudenor Lima, filho de Luiz Pereira Lima, a deputado estadual, os Lúcio, querendo mostrar força política, elegem o médico José Marques da Silva também deputado estadual. E o conflito fica iminente.
Tiroteios, mortes (do vereador Benício Alves e do deputado Marques da Silva), fugas, lágrimas, choro. Era o dia a dia de Arapiraca, que elegeu o menino pobre João Lúcio prefeito do município. Em dois de fevereiro de 1956, dia de festividades religiosas em Arapiraca (comemora-se Nossa Senhora do Bom Conselho), a Câmara de Vereadores, sob a presidência do irmão-vereador José Lúcio de Melo, dá posse ao novo prefeito, iniciando-se uma nova era na política e administração municipal.
Duas vezes prefeito
Realmente no primeiro período em que foi prefeito, João Lúcio não fez uma administração primorosa. Além de continuar com problemas políticos muito grandes, sem apoio do governador Muniz Falcão, adversário, tinha de conviver com inimigos políticos importantes – os Pereira, principalmente na pessoa do deputado Claudenor Lima. Ele, seu irmão José Lúcio de Melo e o vereador José Pereira Lúcio, o deputado Marques da Silva e alguns correligionários sofriam constantemente as adversidades políticas. Exemplo: já havia sido assassinado o vereador Benício Alves, em outubro de 1956. E onze dias após a posse, o prefeito viu seu amigo e correligionário deputado Marques da Silva ser também assassinado. Foram tempos difíceis.
João Lúcio quando do assassinato do deputado Marques da Silva. Foto de 1957.
Pela segunda vez, porém, em 1966, voltou a administrar o município, sucedendo o prefeito Francisco Pereira Lima, que havia ajudado a ser eleito. E aí deslanchou como administrador, tendo como secretário-geral da Prefeitura seu filho Narcizo Lúcio. Arapiraca passa a figurar, já praticamente pacificada politicamente, como uma dos principais municípios do Nordeste, em crescimento e desenvolvimento. Fez importante administração, elegendo o sucessor João Batista Pereira da Silva.
Durante seu tempo como prefeito, participou de eleições importantes; Era a principal figura nas eleições de José Lúcio de Melo a deputado estadual e José Pereira Lúcio a deputado federal.
E a paz vivia em Arapiraca!
Tentativa de paz entre a UDN e o PSD: os Lúcio e os Pereira. Foto tirada na praça Luiz Pereira Lima.
Senador da República
Sizudo, mas não rude, João Lúcio continuava a labuta diária sem sofreguidão. De casa aos armazéns de amigos, olhando e/ou negociando fumo em corda. Com amigos ou mesmo adversários políticos. Para ele, não havia escolha política: interessava o produto a ser comprado e seu preço. Às noites, depois do terço a Nossa Senhora e a janta com a família, ir ao coreto da praça Marques da Silva e, junto aos correligionários, saborear um bom “papo”. Era o ano de 1981
Mas, foi aí que surgiu o Senado Federal: sob a presidência do senador Jarbas Passarinho, a mesa diretora convocava o matuto João Lúcio para assumir, na licença do senador Arnon de Melo, uma das três cadeiras de Alagoas. Foi amigo dos senadores Jarbas Passarinho e Nilo Coelho.
E saiu do aconchego de sua residência a um apartamento da SQS 309, em Brasília. Ou, como diziam alguns, com uma ponta de inveja ou orgulho, do Cavaco, em Arapiraca, a Brasília, capital da República. De suplente, passou a titular em setembro de 1983, com a morte do senador Arnon de Melo.
Durante o pouco tempo que foi senador, de 1981 a 1983, tornou-se amigo dos senadores Jarbas Passarinho, do Pará, e Nilo Coelho, de Pernambuco. Acompanhou o senador Jarbas Passarinho a Assembléia Legislativa de Alagoas, quando este recebeu o título de Cidadão Alagoano.
Manifestou-se duas vezes sobre amigos e políticos de Alagoas. Sobre Arnon de Melo, disse em pronunciamento no Senado: “O dia 29 _de setembro amanheceu, em todo o País, tristonho. A própria natureza parecia que também estava nessa mesma situação, principalmente em Alagoas.
“Arnon de Mello, aquele menino pobre, estudioso, dedicado fazendo jornalismo, era, sem dúvida nenhuma, uma figura das mais importantes. O Brasil, principalmente Alagoas, perdeu um grande filho, um filho nobre. Fundou o jornal O Eco em Alagoas. No Rio de Janeiro, ficou no jornal A Vanguarda. Arnon de Mello trabalhou ainda no Diário de Notícias, com muita honra para todos os alagoanos. Seu sonho era jornal. Em seguida, Arnon de Mello formou-se em Direito. Daí para frente o seu sonho era casar. E Arnon procurou casar-se, e casou muito bem com Leda Collor, filha de Lindolfo Collor, que foi Ministro do Governo Getúlio Vargas.”
Acerca de Teotônio Vilela, em homenagem no senado, disse: “Associo meus sentimentos na tarde de hoje, junto aos dos demais colegas que aqui falaram, com relação a Teotônio Vilela.
"Teotônio Vilela, o meu grande amigo, o meu grande colega, juntos trabalhamos ombro a ombro, em todas as campanhas políticas. Tive a grande honra de trabalhar para Teotônio Vilela em todas suas eleições. Teotõnio Vilela era um hóspede da minha casa, mesmo nos banquetes, em Arapiraca, sempre me pedia: Lúcio, quero comer na sua casa. E ele se fez um irmão. Sr. Presidente. não tenho condições de falar sobre Teotõnio Vilela na tarde de hoje, pois estou profundamente pesaroso.
“Aquele homem. o alagoano, o brasileiro que todos n6s conhecemos. ultrapassou os limites. porque apesar de pouco estudo, sem formação universitária, alcançava
mais longe do que muitos e muitos homens formados em faculdades. Teotônio Vilela deixou uma lacuna na vida do País, que jamais poderá ser preenchida, quer pela sua honradez, quer pela sinceridade com que sempre agiu.”
João Lúcio (esposa Inez e filho Carlos Hamilton), tendo à direita o professor Raimundo Araújo, Maria Lira e Maristela Porto.
Esse foi João Lúcio da Silva, matuto nascidos nos Caititus, passando pelo Cavaco e praça Marques da Silva, todos em Arapiraca, que, por destino, foi Senador da República.
Referências
- Câmara Municipal de Arapiraca (3ª. Legislatura – 1955/1958);
- Câmara Municipal de Arapiraca (6ª. Legislatura – 1967/1970);
- Diário do Congresso Nacional (edição no. 143, 26/10/1983);
- Diário do Congresso Nacional (edição no.163, 29/11/1983);
- Globo (18/7/85); INF. FAM. Ana Alice da Silva (18/7/1985);
- Memória Viva – Arapiraca (livro em pdf, 2019);
- Zezito Guedes, “Arapiraca através dos tempos”, 1999.
Senador João Lúcio da Silva.
*Jornalista
(Publicado no JORNAL DE ARAPIRACA, edição 196, 2021)
Vida fácil
*Manoel Ferreira Lira
Menino pequeno, lá pelos fins dos anos 50, fiz minha primeira incursão nas casas das “mulheres de vida fácil” de Arapiraca, os cabarés da Rua 16 de Setembro, pertinho do Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho (à época era Ginásio). Meu professor foi o mestre da alfaiataria Jurandir Braz.
Uma tarde, na garupa de uma bicicleta Monark, fui todo ancho conhecer aquilo de que tanto falavam maravilha: as mulheres que traziam alegria e prazer para os homens. Sempre guiado pelo Jurandir cheguei trêmulo à Rua 16. Em uma das “tocas” (assim eram chamadas as casas daquela rua), que tinha como dona uma mulher alta, bonita, maia gasta pelo tempo e trabalho, fui apresentado como amigo de meu guia. Recebi uma garrafa de guaraná Antárctica, espumante, e a saboreava enquanto meu mestre tomava cerveja.
Estava todo prosa e ria por dentro, com minha presença no “templo” das deusas como bem chamava o professor Miguel Valeriano, na sua verve incorrigível. Era como se fosse minha entrada triunfal na vida adulta. Leitor de gibis de Rock Lane, Bill Elliot, Hopalong Cassidy, Zorro, Rim Tim Tim, passava a ter meu primeiro contato com a vida mundana da Rua 16. E pelas mãos de Jurandir Braz, conhecido como conhecedor profundo daquela vida.
Lá pelas três horas da tarde, saímos da casa da bonita mulher e fomos até outra “toca”, eu e meu patrono. Essa, cheia de moças, louras, morenas, ruivas, bonitas e feias, gordas e magras.
-Esse é o Ferrerinha.
Era assim que me apresentava a todas as “meninas”. Bem ancho, saboreando outra garrafa de guaraná eu me deslumbrava com aquele mundo novo, cheio de luzes, mulheres com pouca roupa, mesas e cadeiras.
Foi quando tudo aconteceu. Irrompendo porta a dentro surgiu um homem alvo, forte e alto. Era o deputado Claudenor Albuquerque acompanhado de mais de dez homens. De todo tipo. De um preto chamado de Zé Macaco ao Alabê, passando pelo Perigoso.
Ao lado do deputado, seu cunhado, Major Ataíde, homem de mais de 1,80 m.
Sentaram-se ao redor das mesas, pediram bebida e conversavam freneticamente. Foi aí que o deputado Claudenor Albuquerque, homem temido em Arapiraca e na região, falou:
-Todo mundo nu. Não quero ninguém com roupa!
Meu mundo desmoronou. A minha satisfação, a minha alegria, o meu deslumbramento, tudo foi por água a baixo. Nu, eu que tinha vergonha de meus pertences. “Oh, meu Deus, e agora!”, pensei.
Tremia todo. Ainda de calças curtas, olhava para meu protetor, o Jurandir Braz, com olhar de “pidão”.
“Ajude-me, ajude-me”, gritava em silêncio.
Jurandir, sentindo minha aflição, dirigiu-se ao deputado e falou:
-Claudenor, deixe o menino por fora. Ele vai embora, tá nervoso, falou.
-Quem é ele, Jurandir? De quem é filho, perguntou o deputado
-Olha, ele é filho de “seu” Odilon, o cunhado do Agnelo.
-Ah, é dos Lira, né?
- É, completou Jurandir Braz. Deixe o menino ir embora.
O deputado olhou para os lados e me mandou ir embora.
-Vai, meu filho, ainda não é sua vez, Vá crescer!
A porta se abriu como um passe de mágica e saí sem olhar para os lados. Fixei meu olhar para frente, saí daquele bar, daquela “toca” e desembalei na carreira até em casa. Parecia que eu voava. Só sentia o vento no meu rosto.
Arfando, em casa despistei minha mãe, que queria saber o porque daquele cansaço, daquele suor por todo o corpo. Não disse nada, pois só pensava em meu corpo nu ao lado daqueles homens.
Passei muito tempo para voltar e frequentar as “tocas” de Arapiraca.
*Jornalista
(Publicado no JORNAL DE ARAPIRACA, edição 145, 2019)
O frio da morte
*Manoel Ferreira Lira
“Quem não pode o que quer,
queira o que pode”.
(frase atribuída por Ortega y Gasset a Leonardo da Vinci)
“
A voz suave do médico Eduardo Manhãs era ouvida cada vez mais longe, fugindo, fugindo.
-“Seu” Manoel, está sentindo alguma coisa!
Quase que não o ouvi. Só o escutava como se estivesse bem longe...
O corpo tremia todo. Um frio tomava conta de todo ele. Era como se todo ele fosse gelando devagarinho.
-Estou com frio; estou tremendo. O frio atingiu meus ossos. Cubra-me, cubra-me, dizia eu a enfermeira que se encontrava à minha esquerda.
Longe, muito longe, ainda consegui ouvir “dê-me ligeiro um marca-passo, número...” não pude mais ouvir nada. Somente pensava, aliás ainda consegui pensar:
-Ah, meu Deus, vão colocar um marca-passo. Vão abrir meu peito.
Rapidamente, como veio, o frio foi desaparecendo. As vozes voltaram a serem ouvidas fortes, inteligíveis
-“Seu” Manoel, está me ouvindo? Está sentindo dor?
-Não, doutor, está tudo bem.
Nada doía; meu peito não tinha sido aberto. Parece que o marca-passo não foi colocado.
-Menos mal, pensei.
Não sei quanto tempo passei na cama cirúrgica da ala de hemodinâmica do Hospital Stella Maris, na cidade de Guarulhos, São Paulo, pois quando dei de mim estava no leito 12 da UTI geral.
Mas, o que me levou a isto? Que me fez sair de um passeio turístico pela bela Buenos Aires e, já de volta ao Brasil, do aeroporto internacional de Guarulhos ter sido encaminhado urgentemente a um hospital da Unimed local?
Enquanto recuperava os sentidos, a lembrança, ainda cheio de fios pelo peito monitorando os sinais vitais, catéteres de oxigênio no nariz, catéter na veia inguinal, por onde escoava tridil ((nitroglicerina) é indicado para tratamento de hipertensão pré-operatória; para controle de insuficiência cardíaca congestiva, no ajuste do infarto agudo do miocárdio, para tratamento de angina pectoris em pacientes que não respondem à nitroglicerina sublingual e beta-bloqueadores e para indução de hipotensão intra-operatória), retroagia ao mês de agosto.
Eu, a esposa Ana, os filhos William e Ana Karlla, a nora Cleuda, o genro Adriano, e mais oito familiares e amigos resolvemos passar cinco dias na capital da Argentina, todos ávidos para expandir novos conhecimentos acerca de Buenos Aires. Principalmente, quem ali estava pela primeira vez, como eu e Adriano.
Num frio de quase 15 graus (é frio para quem vive no nordeste brasileiro), chegamos à tarde no aeroporto de Ezeiza. Em três taxis, nos deslocamos para a praça da Liberdade, onde ficaríamos em dois apartamentos alugados por temporada.
Curioso, me deleitava na visão daquela cidade que surgia diante de mim, com avenidas e ruas largas, retilíneas, edifícios, novos e antigos, bem cuidados, diferente de minha ideia inicial e incutida por amigos, de uma cidade suja e feia. À primeira impressão, fiquei deslumbrado.
Tudo ia bem até a véspera do retorno. Durante a noite, lá pela madrugada, acordei ouvindo estrondos de trovão e, logo após, o quarto clareava com a luz dos relâmpagos. Parecia dia. Trovoava e relampejava como nunca tinha presenciado.
Os trovões e os relâmpagos não me incomodaram, porém. O que me preocupou seriamente foi uma dor atroz de dente. Era do lado esquerdo. A dor foi tanta que irradiou para o peito. Imediatamente, coloquei um isordil sublingual., tentando acalmar meu coração, que dava sinais de aperto e respiração ofegante. Além disso, tomei dois comprimidos de tylenol (analgésico) para tentar diminuir a dor de dente.
Consegui cochilar sentado na cama.
Pela manhã, saímos todos para o aeroporto central de Buenos Aires, o Park, para embarcar de volta a Alagoas, via São Paulo. Indisposto, me aconcheguei na cadeira do avião.
As dores persistiam. Tanto a dor de dente quanto a que pressionava meu tórax. Querendo esconder o desconforto de minha esposa, colocava a mão direita no bolso esquerdo da camisa e, calmamente, retirava um isordil sublingual. Nos ares, entre Buenos Aires e São Paulo, usei três comprimidos de isordil.
Entre o avião e a esteira onde se encontravam as bagagens, mal conseguia me deslocar. Toda a excursão foi até uma loja no Duty Free, e eu fiquei à porta, sentado. Longos minutos. Meu filho, sentindo minha falta nas dependências da loja de importado, me procurou. E tudo veio de repente!
-Estou mal. Quero vomitar, disse-lhe!
Quase as carreiras, saiu à procura de assistência médica. Um paramédico e uma assistente, empurrando uma cadeira de rodas, chegaram rápido. E sairam em desabalada.
Rapidamente, fui levado à sala de primeiros socorros do Aeroporto de Guarulhos. Retiraram minha camisa, desabotoaram o cinto e a calça.
Vomitei aos cântaros!
Embaixo da língua, colocaram mais um comprimido de isordil e pediram para mastigar um comprimido de aspirina (ácido-acetil-salicílico). Fui todo monitorado e um eletro foi tirado rapidamente.
A maca, onde me encontrava, ficou um verdadeiro mar de suor.
Após alguns minutos, uma ambulância me levava à Emergência da Unimed, na cidade de Guarulhos. Eu rezava.
Fui colocado na UTI geral, junto com todo tipo de doentes, pois não havia vaga na UTI coronariana. Imediatamente, o plantonista mandou fazer novo eletro e preparou-me para receber soro com um medicamento de nome Tridil, a uma percentagem de 15%. Para a dor de dente, nada.
E as dores continuavam. Eu pedia algo para aplacar aquela dor, sem sucesso.
-Vamos cuidar logo de seu coração, disse uma pessoa que identifiquei, depois, ser outro médico da UTI. Era dia 21 de agosto, aniversário de Ana. Que presente!
Indormido, somente com alguns lampejos de cochilo, soube que já estávamos em um novo dia. E assim, fiquei cinco dias naquela unidade de tratamento intensivo. Todos da excursão seguiram viagem, menos a esposa, filhos, nora e genro que ficaram alojados em um hotel da cidade, à espera.
Neste quinto dia, saí da UTI e me alojaram num apartamento, à espera de, após resolverem problemas burocráticos com a Unimed Maceió, realizar uma angioplastia para desobstruir artérias de meu coração. Seria mais uma tentativa para fazer com que o sangue voltasse a percorrer livremente as artérias coronarianas, uma vez que possuo ponte de safena (três safenas e duas mamárias) e três stents (pequena prótese em forma de tubo que é colocada no interior da artéria para que haja fluxo sanguíneo e o vaso não fique totalmente obstruído).
Voltando ao Hospital Stella Maris, após nove dias de UTI e depois do insucesso em desobstruir minhas artérias, estou a tentar através de um procedimento conhecido como angioplastia com rotablator (espécie de furadeira por dentro da artéria para retirar as placas de ateromas nas artérias (elas perdem a elasticidade e tornam-se mais rígidas), o que contribui para aumentar a pressão arterial). Este procedimento deverá ser no Hospital do Coração, o HCOR de São Paulo, através da equipe do médico Eduardo de Souza.
*Jornalista
(Publicado no JORNAL DO INTERIOR, edição 15, ano 2023)
A PRISÃO
Eu não sabia como agir. Se fazia parte da passeata pelas ruas centrais de Salvador, protestando contra a ditadura militar, ou se acompanhava as manifestações estudantís e cobria os acontecimentos para o Jornal da Bahia, onde era repórter. Decidí-me por participar das manifestações. À tarde, vestido com um blusão azul (apesar do sol forte de todos os dias), saí gritando palavras de ordem contra a ditadura, contra o governo estadual, contra a polícia da Bahia, contra tudo.
Alegre, cheio de vigor da juventude, ia com a manifestação estudantil em direção à praça da Sé, passando pela avenida Sete e rua Chile. Em frente ao palácio do governo, na esquina entre a rua Chile e o paço Municipal, vi quando dois braços se erguiam segurando uma máquina fotográfica. Ela clicava repetidamente.
Não titubeei. Mesmo pequeno, fiz um esforço e pulei para alcançar os braços de alguém que se escondia por trás da janela do palácio. Arranquei a máquina daquela pessoa e a joguei no chão de asfalto. As fotos que tentavam tirar dos manifestantes estavam irremediavelmente perdidas. Pelo menos, naquele dia, por aquela máquina, ninguém seria identificado.
Estava com a alma lavada. Tinha cumprido minha parte no “processo revolucionário”. Voltei para o quarto onde morava, lá pelas l8:00 horas, cheio de orgulho. Dormí como um anjo.
Era o ano de 1968. O Brasil fervia com as manifestações estudantís. Rio, São Paulo, Salvador eram palcos para estudantes universitários e secundaristas. Na Bahia, governava o Estado Luís Viana Filho, ex-ministro da Justiça de Castelo Branco. Era seu vice Jutahí Magalhães.
Na manhã seguinte à minha gloriosa ação dirigí-me ao Jornal da Bahia. Na pauta, estava a escala para cobrir o movimento estudantil daquele dia. Gilson, chefe de reportagem, segundo diziam membro do PCB, me orientou sobre a cobertura. Delicada, segundo ele, pois a censura atuava em todos os setores da imprensa.
E lá estava eu, novamente com o mesmo blusão azul, percorrendo as ruas Sete e Chile. Agora sem as palavras de ordem, sem o “abaixo a ditadura” do dia anterior. Comprenetado, seguia as manifestações, o movimento das tropas da Polícia Militar, as correrias e os gritos de dor. Lá para as 17:00 horas, em frente ao paço Municipal e de costas para o Elevador Lacerda, fiquei a assistir a tudo. Estava acompanhado de Florisvaldo Matos, meu professor de Jornalismo, e correspondente do Jornal do Brasil, e de Eliezer Gomes, de A Tarde.
Sirenes, gritos, bombas de gás lacrimogêneo, correrias. Era o auge das manifestações. De repente, uma mão me cutuca as costas. Virei-me. Era um cidadão alto, magro, de terno escuro. Chamou-me ao lado, agarrou meu braço esquerdo e disse que alguém queria falar comigo no pátio do Palácio do Governo. Não pude nem avisar os outros. Quando dei de mim, um portão fechava-se às minhas costas.
E saiu em direção a uma porta estreita, que dava para o interior do palácio.
Senti um calafrio. Por que estava eu alí, sentado naquele banco, fora das minhas obrigações de repórter? Não lembrava de meu dia de glória anterior! tempo
O tempo ia correndo. E ninguém aparecia. As horas estavam embaralhadas e só aparecia frente a mim a indagação: “por que estou aqui”?
Estava neste vagar quando aquele homem surgiu frente a mim.
-Quem é você? De onde você é? Por favor, me dê sua carteira de identificação, disse-me ele. Logo em seguida desapareceu novamente. Conseguí verificar as horas. Eram 17,30 horas. Ia escurecendo em Salvador. Foi quando o portão se abriu e por ele passou Florisvaldo Matos. “Agora, sim, tudo se resolverá,” pensei. Florisvaldo olhou para mim e exclamou:
-Que você está fazendo aí?
-E eu sei! disse. Até agora não falaram nada. Só me mandaram ficar aqui, sentado. E levaram minha carteira de identidade.
-Tá certo, fique aí que eu vou saber alguma, disse Florisvaldo.
Ele também entrou porta a dentro, em direção ao palácio. Pouco tempo depois, surgiu uma pessoa, desconhecida para mim.
-Diga seu nome. De onde você é? Onde você nasceu? Que faz na Bahia
Respondí a tudo: meu nome, que era alagoano, natural de Feira Grande e trabalhava no Jornal da Bahia como repórter e estava alí cobrindo as manifestações estudantís.
A pessoa foi embora, sem nada mais dizer.
Eram 18:30 horas quando chegou uma outra pessoa. E as mesmas perguntas:
-Quem é você? De onde é? Onde nasceu? Que veio fazer aqui?
Depois, pediu para acompanhá-lo.
Entramos no palácio, subimos uma escada de madeira e demos numa grande sala cheia de gente. Birôs tinham uns cinco. Havia dois serviços de rádio. Fui levado à frente de uma pessoa alva, alta, magra. Educadamente, perguntou meu nome, meu endereço, de onde era, que fazia em Salvador. Respondí a tudo. Olhei para o lado e ví Florisvaldo Matos junto a uma senhora gorda, baixa, negra. Depois soube que era Zilá, correspondente do jornal O Estado de São Paulo
-Sente-se aí, disse-me o homem.
Após uns 15 minutos, mais ou menos, aquele homem - que parecia ser o chefe daquela bagunça - disse-me:
-Olha, foi um engano. O governador encarregou-me de pedir-lhe desculpas. O senhor está liberado, afirmou.
Foi um alívio. Virei-me para Zilá e Ariosvaldo e conversamos durante poucos minutos. Agradecí a eles e me despedí. Foi aí que surgiu a figura magra, alta, que me havia conduzido até o pátio do palácio.
-Olha, senhor, vou acompanhá-lo até a porta que vai dar até a rua Chile. Desculpe-me. Deve ter havido algum engano.
Dizendo isto, desceu as escadas comigo. Eu ainda retruquei:
-Não precisa me acompanhar, não! Isto é da vida e da profissão
Quando chegamos quase na calçada do palácio, ví um jipão com os fundos abertos e duas pessoas dentro. E o susto: fui empurrado por meu acompanhante com tanta força que caí dentro do carro. Imediatamente a porta trazeira foi fechada por um militar.Deu tempo de ver Zilá saindo do palácio. Ela também me viu, arregalando os olhos.
O carro saiu em desabalada velocidade pela contramão, descendo em direção da avenida Sete.
Eu tremia. E não era de frio.
Algum tempo depois, o jipão entrava no quartel da Polícia Militar da Bahia, no fim da, pertinho do quarto onde morava na avenida Sete, número 141. Abriram a trazeira do carro, mandaram que nós seguíssemos um cabo (eu e os outros dois, que depois soube serem estudantes, um universitário e um secundarista).
Em frente a uma autoridade policial, sentada no birô, que identifiquei como sendo o tenente Etienne, mandaram-me tirar o cinto e entregar todos os pertences. Tinha comigo uma carteira com alguns documentos, como carteira estudantil, e duas chaves do quarto onde morava. Depois, novamente me identificaram. Citei meu nome, nomes de pai e mãe, endereço de Salvador, endereço de meus pais em Alagoas. Um soldado batia todas as respostas numa máquina velha. sentado à direita do tenente. Um outro soldado, sangrando na testa, entrou no recinto e se identificou. Disse ele que tinha recebido uma pedrada dos estudantes.
O sangue lhe escorria tênue pela fronte.
Foi aí que entraram outros soldados. Um deles, olhou-me frio.
-Tenente, deixe que eu arranque o bigode desse cachorro a unha, falou.
- Não, nada disso, respondeu o tenente Etienne.
Um frio percorreu minha espinha.
Após isto, levaram-me até o pátio do quartel e pediram que tirasse os sapatos e meias. Revistaram-me totalmente.
Estava escuro.
Fechado, ou melhor, trancafiado numa cela minúscula, acompanhado dos outros dois “companheiros”, e tendo na entrada um cão da raça pastor alemão a me guardar, comecei a ficar com medo. Medo do que poderia vir das ordens do tenente Etienne e de seus RS (Representação de Segurança), como eram chamados os policiais do batalhão de choque da Polícia Militar da Bahia. Eram soldados enormes, armados com cassetetes conhecidos como “fanta” devido ao tamanho.
Por tres vezes, fui retirado da cela para responder àquelas mesmas perguntas que me faziam desde o primeiro momento em que foi detido. E por tres vezes voltei ao convívio com os “companheiros”. Estava muito escuro. Na cela não havia lâmpada nem qualquer outro objeto que servisse para iluminar o local. Na escuridão, ouvíamos gritos de dor, latidos de cães pastores e barulho de gente indo e vindo. Só ouvíamos.
Uma eternidade depois, fui novamente chamado:
-Alagoano, venha até aqui!
Era um milico me chamando. Ele abriu a cela, pegou em meu braço e disse:
-Vamos até a sala do tenente.
Lá, além do tenente Etienne e do policial que batia na máquina de escrever, estavam dois soldados, um cabo e um oficial (não sei identificar bem a graduação deste pessoal. Podia ser um major, um capitão, um coronel, qualquer um).
-O senhor vai acompanhar este oficial. Aqui estão seus objetos pessoais. Falta alguma coisa?
Era o tenente Etienne.
Faltavam as chaves. Mas eu disse que não faltava nada, que tudo estava alí. Levaram-me até uma rural Willys, colocando-me no banco trazeiro entre os dois soldados. O cabo assumiu a direção e ao lado, no banco dianteiro, ia o oficial. Apesar de ser mais de 21:00 horas, notava-se que ele era sarará.
O veículo saiu em direção a avenida Sete e nas imediações do local onde morava o oficial falou pela primeira vez:
- Sou o ajudante-de-ordem do vice-governador Jutahy Magalhães. O senhor está solto. Ele manda pedir-lhe desculpas pelo ocorrido.
- Olha, esta é a segunda vez que me dizem isto. Se estou solto, pode deixar-me descer aqui mesmo, disse-lhe.
-Não, não posso fazer isto. O senhor será levado até o jornal Diário de Notícias e entregue ao senhor Clementino, redator-chefe. O senhor o conhece, falava o oficial.
- Claro, claro que o conheço, respondí.
Mas eu não conhecia Clementino algum. Eu era do Jornal da Bahia. O diário de Notícia era um órgão dos Diários Associados, juntamente com o jornal O Estado da Bahia, a Rádio Sociedade da Bahia e a Tv Itapuã.
Chagamos a rua Carlos Gomes, onde funcionava o jornal. Na entrada do prédio me adiantei um pouquinho e perguntei baixinho a uma pessoa na frente da redação¨
- Quem é Clementino
- Aquele alí, o gordo, respondeu.
Dirigí-me até ele:
- Clementino, meu amigo, olha como sofre a imprensa. Por fazer meu trabalho fui preso. Mas é isto mesmo. Foi uma experiência.
Aquele cidadão, conhecido como Clementino, redator-chefe do jornal Diário de Notícias, me abraçou.
-Essa é uma experiência que você não esquecerá nunca. O vice governador pediu-me para recebê-lo. É bom tê-lo de volta.
Dizendo isto, o redator-chefe foi agradecendo ao ajudante-de-ordem do vice governador. Este ainda dirigiu-se a mim:
-Mais uma vez as desculpas do governo da Bahia.
A redação toda me olhava. Apesar de ser tarde da noite, as redações dos jornais naquela época iam até a madrugada. Eram arcaicos, impressos em linotipo. Mais calmo, com a certeza de que não continuava na cela do quartel da Polícia Militar, virei-me para Clementino e falei:
-Meu amigo, peço-lhe desculpas, pois esta é a primeira vez que o vejo. Tive de me expressar como se o conhecesse para dar a entender que o conhecia.
Neste momento, uma pessoa levantou-se, empurrou a máquina de escrever, levantou-a e se dirigiu até a mim.
- Meu amigo, ainda está com medo?
Era Jô, colega da faculdade e de sala. Alta, negra, bonita
- Jô, esse medo não vai passar nunca!
(do livro MEMÓRIAS DE UM QUASE COMUNISTA, de Manoel Ferreira Lira)